A história de como conheci as Bruxas da Noite é longa e atribulada. Contá-la de forma a que todos entendam implica explicar o mundo paralelo ao nosso, que a maior parte das pessoas não sabe que existe. Como tal, vou começar pelo que, para mim, foi o início: o evento que me deu a conhecer esse mundo.
Desde novo que tenho interesse pela exploração urbana. Aos treze anos, juntei-me ao grupo de Braga e, durante os anos que se seguiram, explorei as ruínas de solares, fábricas, mosteiros e muitos outros edifícios interessantes. Porém, só quando já estava na casa dos trinta é que me atrevi a fazer uma exploração sozinho.
Foi a uma casa na freguesia de Palmeira, nos arredores de Braga, que eu havia descoberto durante uma das muitas visitas ao Palácio da Dona Chica que o grupo organizara. Apesar de eu ter chamado atenção para ela, mais ninguém mostrou interesse em explorá-la. Era uma casa pequena, só com rés-do-chão, e com nada que a distinguisse daquelas que a rodeavam. Mas algo nela me chamava. Talvez por me fazer lembrar da casa da minha bisavó, ou porque era antiga que chegue para conter testemunhos da vida de outrora, que não se encontram em nenhuma casa moderna.
Fosse porque fosse, numa tarde de domingo morrinhosa, quando a minha mulher foi visitar os pais com a nossa filha, conduzi até à velha casa. Tendo cuidado para os vizinhos não me verem, entrei por uma janela cujos vidros e persiana haviam sido partidos por vândalos.
Do outro lado, encontrei o que seria de esperar: uma sala cheia de vidros partidos, seringas e mobília destruída. Tudo o que teria algum valor, já havia há muito sido saqueado. Ainda assim, não me detive. Cuidadosamente, temendo encontrar alguma pessoa menos recomendável, continuei a explorar a casa.
Entrei no corredor, que dava acesso a mais duas divisões. Passando por cima dos restos partidos de portas, entrei no quarto, onde o cenário não era muito melhor do que na sala. Na janela, agitados pelo vento, dançavam os farrapos que restavam de umas cortinas em croché. Roupa cobria quase todo o chão, de vestidos negros a chapéus de feltro, claramente arrancada do armário apodrecido e descartada por não ter qualquer valor. Curiosamente, e apesar do interesse que os antiquários costumam ter em tais peças, uma cama de ferro, cuja pintura branca já tinha sido quase inteiramente substituída por ferrugem, ainda se encontrava na divisão, mas virada e atirada para um canto. O colchão havia sido retirado e posto no chão, encostado à parede. Estava coberto de manchas vermelhas, amarelas e brancas, e senti um arrepio ao pensar em tudo o que podia ter ali acontecido.
Passei, então, para a divisão que restava, a cozinha. O chão estava pejado de loiça partida, e os armários, escancarados e vazios. Tudo o resto havia sido levado.
Desanimado, preparei-me para voltar para casa. Infelizmente, não havia ali nada de interesse. Os outros do grupo de exploradores urbanos tinham razão.
Ia deixar a cozinha, quando um brilho metálico chamou a minha atenção para a diminuta dispensa. Lá, por entre prateleiras partidas e restos nauseabundos de comida apodrecida, encontrei uma porta. O brilho pertencia a uma primitiva fechadura de trinco, que abri imediatamente. Do outro lado, encontrei uma escadaria de pedra que descia para a escuridão. Como era meu hábito quando explorava uma estrutura, tinha levado uma lanterna comigo. A sua luz revelou uma cave no fundo das escadas, aparentemente intocada pelos vândalos. Talvez a falta de luz natural os tivesse mantido afastados.
Degrau a degrau, pois não sabia o que me esperava nem tinha certezas quanto à robustez das escadas, desci. No fundo, encontrei uma verdadeira cápsula do tempo do Portugal do meio do século passado.
Num canto, vi uma antiga máquina de costura manual, ainda com o pedal e a correia que transmitia o movimento até à agulha. Numa mesa mesmo ao lado, ainda repousava um ferro de engomar a carvão. Quase que ainda conseguia ver o fumo a sair da sua pequena chaminé.
No outro lado da cave, junto a um sofá de tecido apodrecido e esburacado, encontrei um armário contendo um rádio de válvulas, o plástico amarelado testamento da sua antiguidade.
Em cima de todas as superfícies, havia testemunhos de tempos passados: candeeiros de petróleo, lajes de lousa, frascos de tinta, canetas de embeber, etc. Contudo, o meu olhar recaiu principalmente num baú de madeira bichada pousado no chão ao lado das escadas. Curioso, abri-o. Não estava trancado. Lá dentro, encontrei álbuns com fotografias, algumas certamente com mais de cem anos. Era triste ver aquelas fotos de grupos animados, de casais a dançar, de jantaradas e pensar que a maioria daquelas pessoas, se não todas, já haviam partido.
No meio dos álbuns, contudo, encontrei um pequeno caderno. Abri-o e verifiquei que se tratava de um diário. Normalmente, nunca tiro nada dos lugares que exploro, nem acho que algum explorador urbano o devia fazer, mas ter nas mãos o relato de uma vida nos tempos de outrora era demasiado tentador, e a minha curiosidade levou-me a melhor, como sempre.
Saí da casa com o livro no bolso. A minha vontade era lê-lo logo ali no carro, mas a hora de jantar aproximava-se.
Quando cheguei a casa, pousei o livro e fui preparar a refeição com o resto da família. Apesar de estar algo curioso sobre o seu conteúdo, jantei com calma e ainda ajudei a minha filha com os trabalhos de casa.
Então, sentei-me à secretária e comecei a ler. As histórias no diário eram, de facto, interessantes, fantásticas, até, mas de uma forma que nunca esperara. Mencionavam lugares escondidos em cidades, montanhas e até no fundo do mar, e encontros com fadas, vampiros, bruxas, trasgos e inúmeros outros seres mitológicos e imaginários.
Seria aquilo uma obra de ficção, ou os devaneios de um louco? Na altura, não conseguia considerar outra hipótese. Contudo, também não conseguia parar de ler, até porque muitas das histórias se passavam em, ou perto, de sítios que conhecia.
Quando finalmente fui para a cama, já eram quase duas da manhã, e só me deitei porque tinha de trabalhar no dia seguinte. Ainda assim, só com muito esforço consegui afastar o livro da minha mente por tempo suficiente para adormecer.
Após a nossa expedição a Ponte de Lima, seguiram-se, como sempre, outras onde poucos sinais encontrámos das Bruxas da Noite. Por fim, um portal levou-nos até outra das criaturas.
Ao contrário dos anteriores, que nos deixaram algo afastados dos locais onde as Bruxas da Noite e os seus esbirros se concentravam, este levou-nos para junto de um acampamento. Assemelhava-se àquele de onde tínhamos partido, no Gerês, com vários abrigos improvisados construídos debaixo de um arvoredo, mas parecia substancialmente mais pequeno. Além disso, não estava abandonado. Goblins, trasgos, ogrons, ogres e até gigantes encontravam-se espalhados por todo o lado.
Por um momento, desviei o olhar do acampamento, tentando perceber onde nos encontrávamos. Por entre as árvores, prontamente avistei duas estruturas familiares: a Ponte e a Igreja de São Gonçalo. Estávamos em Amarante, mais precisamente na maior das duas ínsuas no centro do Rio Tâmega.
Como seria de esperar, havia algumas pessoas na margem e na velha Ponte de São Gonçalo, e um ou outro carro passava na ponte nova, que atravessava o rio por cima da ínsua, mas ninguém parecia estranhar a presença das criaturas das Bruxas da Noite. Algo devia ocultar os ocupantes da ilha dos habitantes da cidade.
Infelizmente, nada nos ocultava dos monstros. Antes de conseguirmos encontrar cobertura, um goblin viu-nos e deu o alarme. A atenção de todas as criaturas virou-se para nós, e algumas começaram a aproximar-se com as armas erguidas.
Os soldados de Almeida ergueram as espingardas automáticas para se defenderem. Apesar de, depois de cada encontro com as Bruxas da Noite, o nosso contingente de soldados tivesse sido sempre aumentado, duvidava que estes fossem em número suficiente para derrotarem a horda à nossa frente.
As criaturas começavam a ganhar velocidade, quando um guincho vindo de trás delas as fez parar. Rapidamente, dividiram-se e abriram caminho até uma enorme tenda, o único abrigo do acampamento que não havia sido improvisado com materiais locais. Diante deste, encontrava-se a figura encapuzada de uma Bruxa da Noite.
Em silêncio, com as suas longas vestes negras arrastando-se pelo chão, aproximou-se, flutuando. Assim que atravessou as linhas das suas criaturas, parou.
Durante um instante, ali ficou, quieta e silenciosa como uma estátua. Nós olhávamos para ela sem saber o que fazer. Almeida abriu a boca várias vezes. Se para dar ordens ou falar com a Bruxa da Noite, não sei dizer, mas acabou por não dizer nada.
Por fim, a Bruxa da Noite emitiu um guincho penetrante, e as criaturas atrás dela carregaram contra nós. A indecisão de Almeida, então, desapareceu.
- Retirar! - gritou.
Corremos de volta ao portal, situado apenas um par de metros atrás de nós. Contudo, quando lá chegámos, não fomos transportados de volta ao Gerês. Como a sua companheira (ou seria a mesma criatura?) em Valença, a Bruxa da Noite tinha feito o portal desaparecer.
A princípio, ficámos atónitos, sem saber bem o que fazer, mas logo os soldados começaram a disparar contra os atacantes. Como eu previra, mesmo com todas as espingardas automáticas e a pistola de Almeida a disparar, a horda continuou a aproximar-se, até porque incluía vários monstros grandes que só podiam ser abatidos por uma grande torrente de balas.
Almeida olhou em volta, procurando por uma maneira de nos tirar daquela situação. Relutantemente, acabou por optar pela única solução possível.
- Retirem para a cidade - gritou.
Com os soldados a disparar constantemente, recuámos até à água. O caudal do rio estava baixo, pelo que não seria difícil atravessar a vau até à margem junto do mercado da cidade. Curiosamente (ou talvez não), assim que saímos da ínsua, deixámos de ver e ouvir os nossos perseguidores. Tratava-se, certamente, dos efeitos do feitiço que ocultava a sua presença dos habitantes da cidade.
Quando chegámos á cidade, simplesmente esperámos. Tínhamos alguma esperança que as criaturas da Bruxa da Noite não nos seguissem para fora do seu acampamento, mas elas entraram na água sem sequer desacelerar. Os soldados da Organização imediatamente voltaram a abrir fogo sobre elas.
O ruído dos tiros começou, então, a atrair a atenção dos transeuntes. Felizmente, como estávamos a meio da tarde de um dia de semana, as ruas estavam quase vazias. Ainda assim, como seria de esperar, os poucos que viram os monstros que nos perseguiam, após um momento de incredulidade, fugiram em pânico. Certamente não tardariam a chamar familiares e amigos ou até a comunicação social. A situação podia tornar-se no pior pesadelo da Organização. Contudo, tínhamos preocupações maiores.
Mesmo com a água a desacelerar o avanço dos nossos atacantes, as balas não conseguiam abater os suficiente para impedir que se aproximassem cada vez mais.
- Recuem para o centro histórico - ordenou Almeida.
Assim fizemos. Até para mim, um leigo no que diz respeito a táticas, o plano de Almeida era óbvio. Ele esperava que as ruas estreitas e as subidas constantes do centro de Amarante ajudassem a compensar a substancial vantagem numérica das criaturas.
Com os soldados a dispararem constantemente, recuámos em direção à exígua passagem que separava a Igreja da Ponte de S. Gonçalo. Foi uma dezena de metros além desta, no meio da Praça da República, que os homens de Almeida formaram uma linha de tiro. Começaram imediatamente a disparar contra as criaturas que tentavam atravessar a passagem, contando com esta para deixar passar apenas alguns inimigos de cada vez e assim ajudar a compensar a nossa desvantagem.
A princípio, a tática resultou. Goblins, trasgos e até ogrons atravessavam a passagem e eram imediatamente abatidos pela chuva de balas dos soldados, nem tendo hipótese de se aproximarem. Contudo, assim que chegaram os primeiros gigantes e ogres, a situação mudou. Estas criaturas eram grandes o suficiente para transporem o parapeito da ponte, que delimitava um dos lados da passagem, e obrigaram os soldados a dividirem os seus disparos.
Um dos gigantes inclusive arrancou uma das pedras da ponte e lançou-a contra nós, matando três dos homens de Almeida.
Este, após aquelas baixas e ao ver que o inimigo estava cada vez mais próximo, ordenou uma nova retirada.
Desta vez, entrámos na estreita rua que levava ao topo do centro histórico e, com os soldados sempre a disparar, subimos até ao pequeno largo em frente da Igreja do Senhor dos Aflitos. Dali, os homens de Almeida podiam disparar sobre todas as criaturas que haviam invadido a Praça da República, incluindo os gigantes, de uma posição elevada.
As criaturas, claro, seguiram-nos, mas, como a passagem entre o convento e a ponte, a rua estreita limitava o número de inimigos que podiam chegar ao largo ao mesmo tempo. E, agora, não havia nenhum atalho óbvio para os monstros maiores.
Durante os minutos que se seguiram, os soldados abateram várias criaturas sem que nenhum dos seus ataques chegasse sequer perto de nós. Até um dos gigantes caiu.
Contudo, o nosso inimigo logo percebeu que tinham de mudar a sua abordagem, e as criaturas começaram a entrar nas ruas adjacentes à Praça da República em busca de outra forma de chegar até nós.
Eu conhecia aquela cidade bem o suficiente para saber que, embora fossem demorar algum tempo, eles acabariam por encontrar o caminho que levava até à nossa retaguarda.
Estava prestes a informar Almeida desse facto, quando este gritou:
- Recuar!
Suponho que ele tivesse chegado à mesma conclusão.
Subimos a rua que levava do largo onde nos encontrávamos até ao antigo Mosteiro de Santa Clara, com os soldados, mais uma vez, a dispararem constantemente para trás. Quando chegámos ao entroncamento seguinte, já avistávamos, ao longe, a força enviada para nos rodear.
Parte do que, em tempos, fora o mosteiro, havia sido transformado, séculos mais tarde, numa casa residencial, que agora servia como Biblioteca Municipal. A bibliotecária, ao ver-nos correr através dos vidros que formavam as paredes do rés do chão, levantou-se da sua secretária, mas, ao ver as criaturas que nos perseguiam, escondeu-se debaixo dela. Felizmente, não parecia haver mais ninguém no edifício para ver aquilo que o público não devia saber que existia.
Nós passámos pelo estreito corredor entre a biblioteca e as ruínas de uma capela que, antanho, havia pertencido ao mosteiro e subimos até ao topo de uns muros revelados por uma escavação arqueológica recente, procurando um ponto elevado que nos trouxesse alguma vantagem tática.
Os homens de Almeida continuaram a disparar contra as criaturas, tentando impedi-las de subir até às nossas posições. Os gigantes e os ogres maiores eram os únicos que nos conseguiam atingir sem ter de trepar, provocando algumas baixas. Ainda assim, não eram muitos, e o fogo concentrado dos soldados, principalmente quando apontado às suas cabeças, conseguia abatê-los.
Um ou outro projétil lançado pelas criaturas mais pequenas conseguia atingir um ponto fraco do equipamento protetor que eu e os homens da Organização envergávamos, mas pouca influência tinham no combate.
Finalmente, pela primeira vez desde a nossa chegada a Amarante, a situação parecia estar sob controlo. O meu único receio era que os soldados ficassem sem munições. Afinal, já estavam a disparar quase constantemente há mais de quinze minutos.
Felizmente, o ataque dos monstros começou a enfraquecer antes que isso ocorresse. Novas criaturas deixaram de se juntar ao ataque, e as restantes acabaram todas por retirar.
Com cuidado, temendo uma possível emboscada, descemos de volta ao rio. Para além de alguns corpos, muitos menos do que aqueles que os soldados tinham abatido, não vimos nenhum sinal do inimigo. Como tal, atravessámos até à ínsua onde se encontrava o acampamento. As criaturas que, quando nós chegámos, o enchiam haviam desaparecido completamente. Só os abrigos abandonados mostravam que tudo aquilo não tinha sido somente uma ilusão.
Almeida pegou no telemóvel e chamou um helicóptero para me ir buscar e reforços para ajudar a ocultar o que havia acontecido em Amarante. Tenho a certeza que, em condições normais, já não seria uma tarefa invejável, mas, depois de todas as pessoas que haviam visto as criaturas naquele dia, iria tornar-se hercúlea.
Entrei no helicóptero que me levaria de volta a Braga e descolámos ainda a tempo de ver os camiões com reforços chegar à Ponte de São Gonçalo.
Infelizmente, não tínhamos ficado mais próximos de descobrir os objetivos das Bruxas da Noite, e o acampamento no Gerês estava a ficar sem portais para explorarmos.
28: Capítulo 28 - A Quinta Bruxa
Durante as nossas expedições através dos portais no acampamento abandonado do Gerês, já havíamos encontrado o covil de quatro das Bruxas da Noite. Não que isso nos tivesse ajudado a pará-las ou sequer a perceber quais eram os seus objetivos. A única coisa que sabíamos era que elas não nos queriam envolver nem que nós nos envolvêssemos.
Contudo, faltava-nos encontrar a quinta bruxa, pelo que ainda havia hipóteses de obtermos respostas, apesar de estarmos a chegar ao fim dos portais no acampamento abandonado.
Eventualmente, tivemos sorte, se se pode usar essa palavra para descrever o que aconteceu.
Como havíamos feito tantas vezes antes, atravessámos um dos portais e, num instante, encontrámo-nos num sítio completamente diferente. Estávamos entre as ruínas do que parecia ter sido um castelo, no topo de um pequeno planalto. Uma muralha baixa, que claramente havia sido reduzida com o passar dos anos, rodeava o amplo espaço onde nos encontrávamos, que estava pejado com o que restava dos alicerces de edifícios há muito desaparecidos. Reconheci de imediato que aquele era o castelo de Castro Laboreiro, pois já o havia visitado várias vezes.
Como sempre, começámos de imediato a investigar o local, procurando por qualquer indício das Bruxas da Noite ou dos seus servos.
Tinham passado menos de cinco minutos quando, de súbito, ouvimos um estrondo distante, semelhante a um trovão. Contudo, o céu estava limpo, pelo que de imediato descartámos a possibilidade de ser uma trovoada.
Um grito de um dos soldados que nos acompanhava alertou-nos para um ponto no céu que se aproximava. Este rapidamente se transformou em cinco figuras de negro encapuzadas.
A uma ordem de Almeida, os soldados apontaram-lhes as espingardas. Não fez grande diferença. Antes de ficarem ao alcance das armas, cada Bruxa da Noite lançou uma bola de chamas a alta velocidade contra nós. Mal tivemos tempo para nos agacharmos atrás das muralhas e muros em ruínas antes de estas atingirem o topo do planalto.
Explosões deflagraram à nossa volta, espalhando chamas e lançando terra e pedras em todas as direções. Alguns soldados caíram, consumidos pelo fogo ou atingidos por estilhaços. E o bombardeamento continuou, com as Bruxas da Noite a lançarem uma torrente avassaladora dos feitiços explosivos, não dando oportunidade aos soldados de responderem. Só havia uma coisa que Almeida podia fazer:
- Retirar! - gritou ele.
Fazendo os possíveis para evitar as explosões à nossa volta, eu, Almeida e os soldados sobreviventes corremos em direção ao portal, esperando que este ainda lá estivesse. Tal era a intensidade do bombardeamento, que não tínhamos hipótese de ajudar os feridos, e quem tentou foi imediatamente derrubado.
Com grande alívio, consegui chegar ao portal incólume e, instantaneamente, encontrei-me no acampamento abandonado, longe do que claramente havia sido uma armadilha das Bruxas da Noite. Almeida surgiu logo depois, coxeante, provavelmente atingido por um estilhaço.
Dos quinze soldados que nos tinham acompanhado, só dois regressaram. Infelizmente, não atravessaram o portal sozinhos. No seu encalço surgiram, uma a uma, as Bruxas da Noite.
Estas elevaram-se imediatamente acima dos homens da Organização que guardavam e estudavam o acampamento abandonado e começaram a lançar as suas bolas de chamas. Os soldados responderam com as espingardas automáticas, mas as criaturas voavam demasiado alto e rápido para as conseguirem atingir.
Homens e equipamento foram envolvidos e destruídos por explosões flamejantes.
Sem poder fazer mais nada, abriguei-me atrás da árvore com o tronco mais largo que encontrei e esperei desesperadamente não ser atingido.
Embora tivesse parecido mais tempo, o meu relógio mostrou que o ataque não durou nem dez minutos. Quando terminou, toda a infraestrutura — tendas, computadores, veículos, etc. — da Organização tinha sido destruída, e mais de dois terços dos seus efetivos jaziam mortos.
Almeida sobrevivera, se bem que ficara com um braço severamente queimado. Só eu e mais duas pessoas tivemos a sorte de escapar incólumes.
As Bruxas da Noite tinham desaparecido pelo portal, e ninguém se atrevera a persegui-las. Era óbvio que aquele ataque fora uma resposta à nossa intromissão nos assuntos delas.
Almeida, apesar dos seus ferimentos, começou de imediato a restabelecer a ordem. Chamou helicópteros para evacuar os feridos e, em seguida, um para me levar de volta a Braga.
Passei a viagem a pensar no que aquele ataque significava para a investigação da Organização às Bruxas da Noite. Almeida não se pronunciou sobre o assunto e, dada a situação, não lhe perguntei. Também duvido que tivesse uma resposta para me dar na altura. Só o tempo a traria.
Muito mudou desde a minha última entrada neste blogue. Desde o ataque ao acampamento do Gerês, deixei de ter contacto com a Organização. Sem a influência deles, o mal-estar causado na empresa onde trabalhava pelas minhas longas e injustificadas ausências levou ao meu despedimento. Para a minha esposa, que já andava desconfiada, o meu despedimento e as suas supostas causas foram a gota de água. O que ela suspeitava que se passava era óbvio, mas eu não lhe podia contar a verdade. Era incapaz de a carregar com o fardo do meu conhecimento de tudo o que existe escondido neste mundo, isto se ela sequer acreditasse em mim. Como tal, expulsou-me de casa e começou a tratar do divórcio.
Assim, sem nada que me prendesse a Braga, voltei para a casa dos meus avós, em Viana do Castelo, e para o quarto da minha juventude.
Deixei as minhas investigações. Depois da forma como tinham destruído a minha vida, não era capaz de continuar. Contudo, também não tinha motivação para fazer mais nada, incluindo encontrar um novo emprego. Passava os meus dias em frente ao computador lendo artigos e vendo vídeos para me entreter e distrair de tudo de tudo o que acontecera e do estado da minha vida. Raramente saía de casa, e quando o fazia era só para ajudar os meus avós com um ou outro recado ou tarefa.
Finalmente, após várias semanas, um evento impeliu-me a sair. O facto de eu me sentir melhor também ajudou. Aliás, na altura, senti que aquilo podia ser um ponto de viragem. Tomei aquilo como uma mensagem dos céus, embora não tivesse sido exclusivamente para mim.
O fenómeno a que me refiro foi uma rara queda de múltiplos meteoros, todos eles com impacto previsto para o noroeste português. Felizmente, nenhum deveria atingir zonas habitadas, embora houvesse sempre a possibilidade de erros e/ou danos colaterais.
Na noite em questão, saí de casa e juntei-me a um grupo de astrônomos amadores locais que haviam montado, e disponibilizado ao público, alguns telescópios no topo de uma colina isolada próxima. Ali, entre conversas de ocasião e discussões sobre astronomia e telescopia, esperámos.
O primeiro sinal dos meteoros surgiu pouco depois da uma da manhã na forma de um ponto de luz distante. Um dos astrônomos amadores deu o alerta, e corremos para os telescópios. Estes não eram suficientes para todos, porém, um dos astrônomos amadores trouxera um equipado com câmara e pôde partilhar a imagem capturada através de um tablet. Não era o mesmo, mas ia ter de servir até ter a oportunidade de espreitar por uma ocular.
Os pontos de luz eram surpreendentemente grandes, bem maiores do que eu esperava. Uns caiam mais perto, outros, mais longe, mas todos pareciam chegar ao solo. Também isto foi inesperado, pois a comunicação social anunciara que a maioria dos meteoros se iriam desintegrar alguns quilômetros no ar. Felizmente, até ao momento, todos eles pareciam ter atingido zonas florestais e não habitacionais. Além disso, dado o seu tamanho, pareciam não ter causado impactos de maior.
Enquanto o telescópio ligado à tablet seguia, usando os motores elétricos no tripé, um dos meteoros, este começou a aumentar de tamanho, até que se tornou numa enorme bola de fogo. Isto, claro, significava que se estava a aproximar. Por momentos, tememos que fosse cair junto a nós, mas logo relaxámos quando percebemos que não seria o caso. O objeto celeste acabou por cair num monte à nossa frente. Como os anteriores, o impacto não foi tão grande como seria de esperar. Também não provocou grande ruído, pelo menos muito menos do que um bólide daquele tamanho devia ter provocado.
Assim que a excitação de um impacto tão próximo esmoreceu, eu e os vários outros astrônomos amadores ali presentes entreolhamo-nos. Depois, quase em uníssono, dirigimo-nos para os nossos carros. Toda a gente queria ir ver o meteorito e o local do impacto. Este podia ter ocorrido no meio do monte, mas parecia ter sido próximo a um enorme rochedo oco conhecido popularmente como "Penedo Furado". Este é bem conhecido da maior parte dos vianenses, assim como o caminho para lá chegar.
A travessia desde o lugar onde os telescópios estavam montados até à estrada de terra batida que levava ao Penedo Furado demorou cerca de quinze minutos. Alguns decidiram deixar ali os carros e continuar a pé, mas os mais curiosos, ou com menos amor aos carros, como eu, seguimos até ao fim do caminho florestal. O progresso não foi fácil. O meu carro abanou bastante ao passar por buracos e rochas, e arranhei a tinta em vários sítios. Ainda assim, o caminho terminava antes de chegar quer ao Penedo Furado, quer ao local do impacto, pelo que eu e os outros curiosos tivemos de percorrer as últimas centenas de metros a pé. Felizmente, tinha uma lanterna no porta-luvas, deixada ali desde os meus tempos de exploração urbana.
Quando, por fim, avistei a cratera, já três outros curiosos haviam lá chegado. Apercebi-me de imediato, pelas suas expressões de confusão, que algo não estava bem. Ainda assim, o que vi no fundo da cratera quando cheguei ao seu limiar apanhou-me de surpresa. O objeto que caíra do céu não era uma rocha, como esperado, mas um enorme objeto triangular de cantos arredondados feito de uma estranha matéria esbranquiçada. Esta parecia maleável, como pele, e estava coberta por uma substância viscosa que provavelmente a protegera e lhe permitira entrar na atmosfera terrestre sem sofrer danos com o intenso calor.
Os restantes curiosos, não pareciam fazer ideia do que se tratava, mas eu sim. Era em tudo semelhante ao "casulo" que a Organização encontrara na foz do rio Lima há algum tempo atrás. E eu lembrava-me bem da criatura que dele saíra. Para meu horror, o casulo no fundo da cratera tinha um enorme buraco num dos lados, revelando que aquilo que transportava já havia desembarcado.
- Temos de sair daqui - gritei, quase inconscientemente. - Já!
Os outros curiosos olharam para mim, alarmados. Porém, antes de terem oportunidade de me perguntar fosse o que fosse, um grito de profundo terror chamou a nossa atenção para outro lado. Reflexivamente, peguei num ramo de árvore caído como arma improvisada e corri para a origem do grito. Alguns dos curiosos imitaram-me. Não que mocas improvisadas nos fossem servir de muito contra as criaturas que casulos daqueles transportavam.
Felizmente, quando chegámos junto ao homem que gritara, não havia sinal do ser de além espaço. Porém, junto aos seus pés, jazia o corpo de uma mulher violentamente mutilado. Garras haviam estraçalhado o tronco, enquanto os membros se encontravam arrancados à sua volta. Durante alguns segundos, ficámos todos a olhar para o corpo, em choque. Então, alguns dos curiosos vomitaram. Depois, em uníssono, corremos todos de volta aos carros.
Assim que me encontrei atrás do volante, conduzi para fora daquele sítio. Devido à pressa, tive ainda menos cuidado do que antes. Por mais que uma vez, fiquei com a sensação de ter feito danos mecânicos ao carro, o que confirmei assim que regressei a casa dos meus avós. Contudo, as avassaladoras revelações daquela noite e as suas implicações ocupavam totalmente a minha mente.
O casulo anteriormente encontrado pela Organização já lá estava há muito tempo. O que significava aquela nova chegada? Qual o propósito da criatura que continha? Onde estava ela? E, mais aterrador ainda, seriam todos os meteoritos que haviam caído naquela noite casulos com criaturas semelhantes? Os reduzidos impactos das suas quedas pareciam indicar que eram menos densos do que seria de esperar se fossem rochas sólidas, pelo que era muito provável. E a Organização, depois da sua derrota no Gerês, teria recursos para os procurar e parar? Afinal, já haviam provocado uma morte. Mas Almeida e os seus homens pareciam haver desaparecido.
Com estes pensamentos a passarem-me pela cabeça, fui para a cama e, futilmente, tentei adormecer. Por fim, apercebi-me que não era ali deitado que ia encontrar respostas. Eu tinha abandonado aquele mundo que existe escondido do nosso, mas a minha intensa curiosidade e preocupação levou-me a melhor. De manhã, voltaria a Braga em busca de alguém nos sítios do costume que me pudesse dar algumas respostas. Com esta decisão feita, lá consegui adormecer, embora tivesse sido um sono cheio de pesadelos.
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